23 de março de 2010

Um parque de diversões da cabeça


Quando abriu os olhos percebeu que estava perdida. Não sabia o que fazer nem quem ela era. Os dedos não tinham digitais. Nas mãos as linhas da vida e da morte sumiram. Agora somente a ausência de qualquer traço de identificação.


Olhou ao redor e viu que estava em um parque de diversões, mas os brinquedos estavam parados, desligados. O parque estava perdendo seus traços. A diversão já não estava ali, a energia fora dissipada.

No carrossel os cavalos tinham as crinas baixas e eram incrivelmente pequenos, a montanha-russa parecia no máximo um montinho de trilhos e a roda que devia ser gigante estava diminuída por não rodar.

Nos carrinhos de guloseimas não foi diferente. O milho não se transformou em pipoca, o açúcar que não virou algodão-doce foi embora com o vento e do amor só restou uma maçã velha.

Ela continuou andando e viu um pardal. Os olhos dele estavam paralisados e o máximo que conseguia fazer era andar, porque tinha esquecido qual a utilidade das asas. Dava uns passinhos desajeitados e caia. Não sabia que era um pássaro.

Foi conseguindo identificar as coisas ao seu redor, mas ela mesma continuava um mistério, não sabia nem sua feição. Nada a conectava àquele mundo. Não entendia o que estava acontecendo.

Saiu do parque, olhou para rua e viu dezenas de carros vazios. Eles inspiravam o abandono de uma solidão desejada. Talvez ela tivesse feito por onde merecer um mundo só seu, para brincar de ser uma personificação divina. Começou a ficar tonta e resolveu voltar ao lugar de origem.

Sentou em um banco e quando abriu os olhos estava em parque de diversões e os brinquedos estavam parados. Em cima do banco tinha um caderno e uma caneta. Olhou para o branco da folha como quem enxerga uma salvação e começou a escrever:

“Quando abriu os olhos percebeu que estava perdida. Não sabia o que fazer nem quem ela era. Os dedos não tinham digitais. Nas mãos as linhas da vida e da morte sumiram. Agora somente a ausência de qualquer traço de identificação.”

Um ciclo infinito em achar e perder. Sonhar e acordar. Ser e esquecer. Até mudar, ser e reescrever de novo, de novo e de novo.



Imagem por Godi


*Título do livro de Lawrence Ferlinghetti
O texto foi originalmente postado em 13/07/08 aqui.

Um comentário:

Yuri Kiddo disse...

Caralho, como esse texto passou despercebido por mim na época?

com certeza seu texto que eu mais gostei!

o começo é tão bom, o meio tão envolvente, que fiquei com medo de estragar no final! mas o final é arrepiante!